Tudo começou com um pequeno erro de cálculo da minha parte. Ir para a noite sem dinheiro é realmente arriscado.
Iniciei a minha prova em Telheiras, não sei especificar o nome a rua, mas posso dizer-vos que estava quase vazia e o sol raiava na sua plenitude. Eram 9 da manhã (mais coisa menos coisa).
O meu trajecto é representado pela linha amarela, e para mim, àquela hora, fez todo o sentido.
Sentia-me fresco, sentia-me forte e sobretudo sentia-me pronto. Não esquecer nunca, mas NUNCA mesmo que "Fazia Sentido". Com estas premissas em mente ataquei asfalto e calçada, numa maratona louca para atingir o meu carro. Passados 10 minutos tinha percorrido os meus primeiros 100 metros.
Para quem pensa seguir este caminho, para quem vê a maratona matinal depois do Loft como objectivo de vida, fica o aviso: Aqui é que se vê quem são os homens! Os primeiros 100 metros são cruciais. Vai apetecer-vos desistir, vão ter sonhos com a vossa cama, vão pensar nos vossos amigos e na vossa familia e vão enfrentar a maior tentação de todas: as pastelarias a abrir com o pão fresco e arrumado nos expositores, como se chamasse por nós. Sim, porque Eles sabem que isso nos fará desistir, Eles sabem que isso mexe connosco. Aí é que vão ter de ser fortes!
Fui seguindo, começava a abandonar Telheiras, passo o Estádio de Alvalade e chego ao Campo Grande. Não posso precisar o tempo, mas creio que mais de meia hora passou, depois daqueles 100 metros iniciais.
Campo Grande. O primeiro check-point. Uma armadilha bem montada pela câmara de Lisboa para nos forçar a desistir. Um sitio calmo e pacato, com muita sombra e bancos. Um oásis no meio do percurso.
Por esta hora, a boca já estava seca e os bebedouros são a tentação do momento. Cedi, admito. Talvez tenha sido isso que me manteve vivo e que me deu força para continuar, e que me fez continuar a pensar "Isto AINDA faz sentido!".
E fez. E eu continuei. Foi uma travessia rápida, e em poucos minutos estava na Avenida do Brasil. Novo sitio, nova prova. Domingo, dia de sol, bairro de idosos, o meu estado fisico. Taxa de mortalidade por atropelamento ascende subitamente aos 27%! O meu objectivo era chegar com vida à Avenida Rio de Janeiro. Um autocarro apita violentamente. Optei por largar o asfalto e só usar os passeios. Parecendo que não, a estrada mata!
Passo o Júlio de Matos rapidamente, não com medo dos que saem mas com receio de que me "convidem" a entrar.
Passo o Inatel e só me falta virar à esquerda, coisa que faço sem hesitar, violando a minha regra de "Não andar no alcatrão", desta vez sem qualquer consequência sonora.
Penso que finalmente cheguei ao meu destino, tirando da cabeça a condução de 5 minutos que ainda teria de fazer. Penso em tocar em casa do Moura, só para dar um Olá e gabar-me do meu feito. De repente coloquei-me na posição dele, e se fosse acordado por um gajo todo sujo da cabeça aos pés, quase às 11 da manhã, daria uso aos meus punhos de titânio.
Tirei a ideia da cabeça e abri o carro. Sentei-me e deixo cair a cabeça para trás, utilizando a almofada para cabeça do banco pela primeira vez. Maior erro. Este teste é O Teste. Supera o teste inicial dos 100 metros. O sono começa a tomar conta de mim e eu infrutiferamente tento resistir. Estou quase a adormecer, e como tal, quase a perder a prova!
Numa última tentativa, abro o porta-luvas e tiro o rádio, que coloco rapidamente no respectivo encaixe. Subitamente, acordo! A voz despertadora de Iran Costa cantando O Bicho salvou-me das profundezas do insucesso! De um momento para o outro tudo volta a fazer sentido.
Ligo o carro e vou para casa. São 11 e tal da manhã e esta foi a minha prova.
Vida abundante.